AINDA VALE A PENA ACREDITAR NA HUMANIDADE: O CASO DOS CARTUCHOS E A "MEA CULPA" NOSSA DE CADA DIA
Uma indagação me persegue desde os primeiros idos de 2000, quando então eu iniciava meus estudos e minhas primeiras reflexões no curso de doutorado. Formulei-a a um professor de Filosofia: "- O ser humano nasce altruísta e se torna egoísta ou nasce egoísta e se torna altruísta?". Um pouco perplexo, sob meu guarda-chuva compartilhado naquele quase inverno madrileño, ele me respondeu que a reposta talvez estivesse nas anotações e investigações que houvera feito Darwin. Não fui buscar, preferi guardar comigo mesma a curiosa indagação e seguir, cotidianamente, com minhas observações acerca dessa eterna pergunta e, quem sabe, obter a resposta empiricamente.
De vez em quando, a gente ouve falar de algum feito extraordinário, um gesto heróico, generoso, altruísta e (por que não?) humano. Pessoas que, por alguma razão, ou sem qualquer razão, nos lembram que isso ainda existe, quando resolvem estender a mão, ajudar ao outro que necessita. Pessoas que, movidas pelo amor e pela compaixão e aparentemente desprovidas de qualquer vaidade, vão lá e dão de comer a quem tem fome, vão lá pra curar a ferida, salvar alguém, acalentar o choro do órfão faminto. Gestos enormes, grandiosos, dignos de nota e que nos tocam, nos emocionam, nos roubam furtivas lágrimas, porque são raros, raríssimos, só se veem de vez em quando, aqui ou acolá. Gestos raramente humanos e que, por isso mesmo, viram manchetes e são "viralizados" nas redes sociais.
Mas hoje eu quero falar de um pequeno gesto - igualmente humano - que não é nem nunca será manchete. Nada de extraordinário, nada semelhante nem próximo do que eu disse acima. Muito pelo contrário. Absolutamente comum e do mundo. Mundano, portanto.
Pois bem. Fui a uma loja especializada em recarregar cartuchos de impressora. Deixei lá os meus, afinal, um novo (dois, então...) custa os olhos da cara e para recarregar é apenas um terço. Ocorre que, ao colocar de volta na minha impressora os cartuchos já recarregados, sou surpreendida com a mensagem: "não há cartucho ou está danificado". Recorro aos meus parcos e auto didatas conhecimentos, limpo aqui, limpo ali, bolos e bolos de papel embebidos em álcool, e nada. Eu já havia ligado na loja que me orientou para que assim procedesse. Foi aí, então, que, fazendo uma nova ligação, o rapaz sugere que o motoboy venha em meu auxílio para verificar o ocorrido. Des-confiada e calejada de experiências passadas e falcatruas, pensei: "Iiiih, aí tem coisa. Vão me cobrar a visita??", perguntei. "Não", disse tranquilamente o rapaz do outro lado da linha. "Ok", respondi aliviada. Ainda assim, cogitei: "Por que tanta gentileza? Aí tem coisa", insisti comigo mesma, num desses meio paranoicos diálogos internos.
Enfim, chegou o motoboy com outros 2 cartuchos novos, colocou-os na impressora e daí veio nova mensagem: "está emperrado, retire aquilo que está emperrando". Eu tinha pressa em continuar com meu trabalho e esse assunto já estava me deixando aturdida e inquieta, lembrava uma daquelas infindáveis e irritantes conversas de espera nos "call centers" de que todos somos vítimas. O motoboy, então, sugeriu levar a impressora para que fosse verificada no laboratório da loja. Por uma fração de segundo, pensei: "custo-benefício, será que eu autorizo ou levo pessoalmente amanhã na loja que mal conheço, afinal esse rapaz não vai me dar nenhum comprovante agora, é "só" um motoboy.... E se ficarem com minha impressora??!", bradei internamente. "Ok, pode levar", surpreendi-me com minha impetuosa resposta, "como assim, vai arriscar?", disse para mim mesma. "Sim, vou".
Nessa noite, tentando apaziguar meu incrédulo, arrogante, torturado e indignado ego, leio uma dessas frases que trago anotadas num caderninho: "(...) afaste do pensamento as ideias ruins. Nunca aceite que o pior poderá acontecer. Espere sempre o melhor e haverá de te vir o melhor (...)".
Isso de certo modo me tranquilizou.
Por poucas horas.
No dia seguinte, volto a ligar na loja e o rapaz me informa que o encarregado estava empenhado em examinar a impressora (em pleno sábado, vão fechar a loja cedo - pensei -, adeus trabalho, agora só segunda feira). Só que não. Alguns minutos depois, para minha surpresa, o motoboy estava de volta com a impressora. Econômico e discreto nas palavras, apenas instalou-a de volta. Agradeci.
E aqui estou eu, agradecida e perplexa, a escrever estas breves linhas para humildemente fazer "mea culpa" pelo sucedido em pensamento e não-dito. Mas também com a intenção de deixar registrado esse pequeno, mundano e insignificante acontecimento, que nunca será manchete. Coisa pouca - talvez uma metáfora - que, como conta-gotas, vem testar a nossa (minha) (in)capacidade de confiar e de (dificuldade de) entrega, vem trazer de volta a crença de que o ser humano - do micro ao macro -, livre de condicionamentos e desprovido de quaisquer formas de EGOísmo, ainda é capaz de se doar desinteressadamente, porque tem dentro de si, guardado - bem lá no fundo – alguns valores humanos intrínsecos: bondade, compaixão, integridade, caráter, honestidade, generosidade e altruísmo.
Não custa nada arriscar a acreditar.
Ainda que acreditar seja um custoso risco.
